sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

"Emancipate yourselves from mental slavery"

- Sai daí Carlinhos! Você vai pegar santo.
- Oxe! Por que?
- Você tá sem camisa.
- E o que tem?
- Não pode entrar no terreiro sem camisa, que pega santo.
- E acontece o que se pegar santo?
- Sei lá! Fica se batendo aí no meio, aí dona Ana tem que fazer um trabalho pra tirar o santo de você.
- Ah...


Saí sem entender, descalço, vestido apenas com um short velho estampado e segurando uma bola chuveirinho já amarelada, sem a pintura dos gomos pretos.

Quase vinte anos depois tive esse flashback ao olhar um quadro de orixás na parede da sala da minha chefa. Era bem parecido com a dança que eu via no barracão de dona Ana, na Boca do Rio.

Ao fundo, Cosme e Vital tocavam timbau num ritmo cadenciado e repetitivo. Eles eram pais de Lequinho e Éder, respectivamente, meus amigos da Lavínia. Até então eu achava que Cosme era crente e Vital católico. Talvez até fossem. As relações religiosas na minha vizinhança não tinham muitas barreiras.

Ao lado, numa cadeira bonita, dona Ana batia palmas e olhava o infinito. Era uma figura enigmática. Avó de dois outros amigos, Manteiga e Bile. Não tive muito contato com ela, apenas um dia em que jogávamos videogame no barracão. Ela parou ao nosso lado, olhou para o meu irmão e falou: “você é de Iemanjá, seu olho é de Iemanjá”.

Dona Ana também era avó de Alemão. Um dia compramos duas pets de fanta para comemorar o aniversário dele depois do baba. Sua mãe nos chamou e explicou que Alemão não podia comemorar aniversário porque era Testemunha de Jeová. Ela pegou uma bíblia e tentou nos explicar que tinha acontecido alguma coisa (a qual não me recordo mais) com João Batista, e esse era o motivo da falta de aniversário, mas daquela vez ia deixar porque a gente não sabia disso e fizemos de coração.

Tudo bem. Tomamos a fanta e combinamos que nos próximos anos comemoraríamos escondidos. Mas nunca mais comemoramos. No mesmo ano, não lembro quanto tempo depois, Boca Mole interrompeu o baba chorando e anunciou que a irmã de Alemão havia morrido. Ela tinha leucemia e não pôde receber transfusões de sangue.

Seria facilmente tomado pelo ódio àquela religião, e fui durante a infância, mas acho que não cabe julgamento neste caso. Existem coisas que eu faço e os hindus abominam, e eles são gente demais para se desprezar. Também não quero levantar uma guerra (mais uma) entre religiões, ou falta delas. Acredito na intenção de seus líderes em disseminar coisas boas, embora soubessem que seres estúpidos não entenderiam suas mensagens e sairiam por aí fazendo merda.

Tenho saudades daquela época em que todos eram amigos, se ajudavam e celebravam juntos durante a semana e, aos domingos, depois do baba, cada um pedia paz, amor e dinheiro a Deus, Jeová e Oxalá, não necessariamente nessa ordem.